sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Nem ciência, nem religião. Parte II


A Bíblia é uniformemente reconhecida pelos historiadores de arte como pertencendo ao pai de van Gogh, Theodorus, um ministro cujo amor pelo grande profeta Isaías era amplamente conhecido. La Joie de Vivre de Zola era um exemplo da literatura naturalista francesa. Juntos eles falavam da eterna tentativa de van Gogh de conciliar suas tradicionais heranças cristãs com a sensibilidade moderna.

Essa era uma conciliação que ele nunca conseguiria alcançar.

O problema com que van Gogh lutou é compartilhado por muitos e, como foi com o grande pintor holandês, vai mais fundo do que conciliar o antigo com o contemporâneo. Qual é o lugar do espiritual em um mundo que é predominantemente materialista? Vivemos no contexto do que Richard John Neuhaus chamou de uma ‘’ área pública nua’’, significando uma cultura em que a conversa e a conduta têm sido despidas dos discernimentos e das influências espirituais. No Ocidente, por exemplo, a lei e a política tornaram a devoção religiosa tão trivial que os indivíduos são forçados a agir – pelo menos em público – como se sua fé não importasse.

Essa falta de contribuição religiosa tem feito a fé parecer menos ‘’real’’ que outros conceitos e empreendimentos, em particular quando nos inclinamos a medir a verdade pelo que pode ser verificado com base em experiências. A fé não é palpável, e por essa razão, nesse mundo, não é relevante. Como tal, a fé não é simplesmente ‘’loucura para os gentios’’ mas com freqüência loucura para os crentes. E a Bíblia não ajuda, pelo menos à primeira vista.

Um homem que parecia gostar de vinho recebe a ordem para construir um barco. Um barco bem grande. No deserto. E então um par de cada animal foi separado a fim de sobreviver a um dilúvio cataclísmico.

Um homem de setenta e cinco anos de idade é chamado para engravidar sua esposa e começar uma grande nação. E, como sabemos, ele fez.

Uma jovem se oferece para dar água aos camelos de um estranho e sua família imediatamente a oferece a um nômade viajante a fim de perpetuar o povo de Deus. Sua reação? ‘’Tudo bem. ’’

Por enquanto, ainda não avançamos além do primeiro dos sessenta e seis livros da Bíblia. E a situação não fica melhor. Tais exemplos conduziram o filósofo Soren Kierkegaard a ver o cristianismo como um ‘’salto no escuro’’, um abandono da experiência e da racionalidade para abraçar o que está além da experiência e da razão.

Esse foi o dilema encontrado por Boromir na primeira parte da trilogia de J.R.R. Tolkien O Senhor dos Anéis. O grande Conselho de Elrond se reúne para determinar o que fazer com o Anel do Senhor do Escuro, que lhes fora trazido pelo destino. É decidido que a única esperança, contra todo pensamento racional, é levar o anel até o Fogo da Montanha da Perdição, o ponto exato da origem do anel. Boromir, o destemido guerreiro da cidade de Gondor que representa a raça dos homens fala:

Eu não entendo por que tudo isso... Por que vocês sempre falam em esconder ou destruir? Por que não devemos pensar que o Grande Anel veio até as nossas mãos para servir-nos na exata hora da nossa necessidade?...Deixe que o Anel seja a arma de vocês, se ele tem tais poderes como vocês dizem. Peguem-no e sigam adiante para a vitória!

O mais velho e mais sábio Elrond lembra Boromir de que o anel é completamente mal; usá-lo contra o Senhor das Trevas faria o seu portador se tornar como o próprio Senhor das Trevas. Boromir se submete ao conselho, mas não em sua mente. Quando a companhia começa sua jornada, ele confronta Frodo – o portador do anel – e mais uma vez levanta o assunto sobre usar o anel.

- Você não estava no Conselho? – respondeu Frodo... – Nós não podemos usá-lo, e o que é feito com ele se converte para o mal.

Então você continua... Todas essas pessoas tem lhe ensinado desta forma... Embora eu muitas vezes duvide que sejam sábios... É loucura não usá-lo... Eu poderia vencer as hostes de Mordor, e todos os homens seriam reunidos ao meu comando!...O único plano que nos é proposto é que um pequenino entre cegamente em Mordor e ofereça ao inimigo toda chance de recapturá-lo para si mesmo. Loucura.

Porém isso não é loucura. É sabedoria suprema – uma sabedoria correndo contra aquela que somente o intelecto pode reunir.

O apóstolo Paulo lembra a igreja de Corinto de que ‘’a palavra da cruz é loucura para os que perecem’’ quando olhada superficialmente. Mas Deus já determinou: ‘’Destruirei a sabedoria dos sábios e aniquilarei a inteligência dos inteligentes’’ porque ela provou ser um absurdo inútil de acordo com seus padrões. ‘’Porque a loucura de Deus é mais sábia do que os homens; e a fraqueza de Deus é mais forte do que os homens’’ (1Co 1.18 – 20,25)

Amar a Deus com toda a sua mente, entretanto requer mais do que uma simples fé em Deus. Nos últimos tempos, a fé cristã fundamental está sitiada pelos esforços intelectuais compartilhados pelo mundo ao nosso redor.

UMA FORTALEZA SOB SÍTIO

Durante o século XIII, poucas coisas se igualavam à importância do castelo. O seu papel militar, político, social, econômico e cultural era soberano. Os castelos foram desenvolvidos no continente europeu no século X como fortalezas particulares de madeira e terraplanagem, trazidos para a Inglaterra pelos normandos e reprojetados usando-se pedras nos séculos XI e XII. As cruzadas sírias expuseram o norte da Europa para novas possibilidades em engenharia; desta forma, no final do século XIII o castelo medieval alcançou o auge do seu desenvolvimento. Então, no século XIV, e de forma crescente no século XV, um único produto se espalhou por toda a Europa e levou ao declínio do castelo. A pólvora.

De repente os castelos estavam sucumbindo com uma velocidade surpreendente a pesadas bolas de pedra atiradas por canhões de ferro (sim! Iguais aos que vemos nos desenhos animados). O que foi uma vez julgado impenetrável de um momento para outro se mostrou vulnerável a uma fonte de poder recentemente desenvolvida.

Assim como as bolas de canhão disparadas pela pólvora finalizaram a época dos castelos, o estouro dos pensamentos modernos forneceu uma nova fonte de explicação e tem dizimado a fortaleza da fé. Causaram um dano peculiar os tiros disparados por Copérnico, Darwin e Freud.

Copérnico e o ataque cosmológico. Copérnico (1473-1543) observava o céu usando um telescópio e determinou que o universo não girava em torno da Terra; em vez disso, afirmou que a Terra girava em torno do sol. Nessa época, a igreja cristã – representada pelo catolicismo – considerava qualquer conhecimento do universo que não fosse centralizado na Terra como sendo heresia.

A posição da igreja era, é claro, errada.

Agora, a Bíblia não estava errada; tratava-se apenas uma suposição distorcida de que a Terra precisava estar no centro da criação a fim de manter de pé a natureza especial da criação de Deus na Terra. Mas os pronunciamentos religiosos sobre assuntos de discussão pública têm sido automaticamente suspeitos desde então, e os modernos cosmólogos agora falam sobre assuntos de fé e filosofia com maior autoridade que padres, pastores e teólogos.

Charles Darwin e o ataque biológico. A investida de Charles Darwin (1809-1882) nos princípios dos pensamentos cristãos não foi cosmológica, mas biológica – ou talvez mais exatamente, antropológica. Em Origins of Species esse filho de pastor argumenta que a origem da humanidade poderia ser considerada de maneiras diferentes da direta criação divina, isto é, através da evolução e, conseqüentemente, seleção natural. Apesar das declarações altamente suspeitas da teoria da evolução de Darwin, a simples idéia de uma explicação da origem humana supostamente enraizada na ciência, mais do que na religião, mostrou-se atrativa. Aqui estava um universo mecânico no qual Deus não existia, ou pelo menos não se intrometeu. A humanidade, que fora considerada a coroa da criação, era agora ‘’um acidente’’ de forças impessoais e ou, explosão espacial neutra.

Considere a natureza duvidosa dessas palavras: Primeiro, a terra não era o centro do universo, e agora os seres humanos não eram o ápice da criação. Com os muros severamente enfraquecidos, uma terceira onda de ataques chegou zunindo no ar.

Sigmund Freud e o ataque psicológico. O filósofo francês Voltaire escreveu em 1770: ‘’Se Dieu n’ existait pas, Il faudrait l’ inventer’’ (‘’Se Deus não existe, seria necessário inventá-lo’’). Sigmund Freud (1856-1939) mais tarde afirmou que Deus não existe; Ele não é nada mais que uma projeção dos nossos desejos, e a simples idéia de uma alma humana é condicionada pelos desejos. Queremos que haja um Deus, então imaginamos tal Ser. Havia agora uma explicação intelectual aparentemente satisfatória para a convicção espiritual sem um apelo para a fé religiosa.

De maneira intrigante, Freud notou que a igreja tem feito pouco mais que se retirar de suas declarações e ataques. Mais propriamente do que empenhar esses desafios a um ponto de vista cristão através do exercício de um intelecto rigoroso, a igreja denunciou e negou, deixando os crentes fiéis com recursos limitados quando encontravam estes desafios no mercado de idéias. A igreja abdicou sua autoridade na verdade pública, e a ciência estava ansiosa demais para assumir o trono.

Poucos imaginam que em nossos dias, as dúvidas correm excessivas até mesmo nas fortalezas mais antigas de fé e devoção.

Um grande perigo no pensamento atual, e que muitos pós-modernos acham e abandonam rapidamente, é a tentação de reduzir o mundo a categorias racionais.

Muitos se agarram à noção de que se alguma coisa não pode ser medida pelos métodos científicos, ou compreendida pelo processo do pensamento racional, não pode ser real – ou pelo menos significativa.

Isso é diferente do que Mark Noll registra em seu livro The Scandal of the Evangelical Mind (O Escândalo da mente Evangélica). Os evangélicos modernos ‘’são descendentes espirituais de líderes e movimentos famosos pela atenção criativa e frutífera à mente’’. Os evangélicos estão escandalizados por suas falhas em abraçar essa herança. Noll e outros justamente chamam os cristãos a desenvolverem uma prática da mente, a pensar de maneira profunda e cristã a respeito de toda vida.

Não há dúvida de que muitos dilemas intelectuais se levantam não porque pensamos demais, e sim porque pensamos muito pouco. A maior luta é ver a razão pelo que ela é – não uma fonte para a verdade, mas um teste para a verdade. Se o cristianismo é verdade, ele se manterá sob qualquer soma de exame intelectual minucioso. Contudo, a razão é limitada no que ela traz à mesa da realidade espiritual. A razão por si mesma não pode tratar o misterioso, o transcendente, o paradoxal e muitas vezes o estético. Ela deixa pouco espaço para pensar (além dos nossos cinco sentidos), em Deus, ainda que por definição Deus seja supra-racional, significando além da razão. Como Martin Luther aconselhou, ‘’a fé deve fechar os seus olhos e não deve julgar ou decidir de acordo com o que sente ou vê’’. Isso é muito diferente de ser não-racional ou irracional; Deus não está alheio à razão, porém, antes, simplesmente mais abrangente que a razão. A fé não é tanto um pulo na escuridão como uma jornada em direção à luz.

Assim a realidade da dúvida permanece, e aqui a luta para compreender a Deus é mais ardentemente sentida.

De fato, nossa mente pode apontar para a mais profunda das realidades. Por que o suporte final para a jornada da fé envolve o intelecto sendo ‘’a prova das coisas que não se vêem’’ (Hb 11.1).


Um comentário:

  1. profundidade, estética, filosófica e espiritual.
    um texto maduro, de alguém que mergulhou no seu íntimo: mental, espiritual e moralmente.
    Adoro vc!!!!!!!!

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